Transferência Indevida

Acordei com a casa em silêncio.

A chuva fina ainda riscava as janelas, mas o vendaval da noite anterior já havia passado. Nenhum som de eletrônicos, nenhum zumbido da geladeira. A luz cinza do dia filtrava pelas frestas da persiana, preenchendo o quarto com uma claridade triste.

Ela já não estava na cama. O travesseiro ainda morno. Ouvi barulhos suaves vindo da cozinha — talheres, passos lentos, o rangido do armário.

Levantei com o corpo estranho. Pesado demais nos ombros, leve demais no peito. As imagens estavam borradas, mas havia uma presença insistente.

Sacudi a cabeça, tentando afastar o resíduo do sonho. Devia ter sido o vinho. A noite longa.

Na cozinha, estava de costas, esquentando água no fogareiro portátil. A luz da manhã desenhava suas costas sob a camiseta fina. Sorriu quando me viu.

— Dormiu bem? — perguntou.

— Não sei — respondi. — Tive um sonho estranho.

Ela riu, mexendo o café com uma colher de metal.

— Eu também. Sonhei com a sua mãe. Estávamos num mercado, acho. Ela me dava conselhos sobre toalhas de mesa. Tinha cheiro de lavanda, sabe? Foi tão real que quase consigo ouvir a voz dela agora. Ela me tratou tão bem!

Fiquei em silêncio por um instante.

— Curioso — disse, tentando soar leve.

— E você?

Engoli em seco.

O cheiro do café começava a se espalhar pela cozinha, mas era como se o ar tivesse ficado mais denso.

Pensei em mentir. Pensei em inventar um sonho banal. Mas a imagem estava viva demais para esconder por completo.

— Sonhei com o Lucas. Aquele do seu trabalho.

O tilintar da colher parou.

Ela virou o rosto devagar, franzindo levemente a testa.

— Como assim, com o Lucas?

O tom era neutro, mas os olhos vacilaram — uma dúvida súbita, como se tentasse lembrar de algo. Ou esconder.

Depois forçou um sorriso breve, voltando a mexer o café.

— É. Ele estava aqui em casa. Não lembro exatamente… — menti, envergonhado.

Mas eu lembrava. Do modo como me olhava. Do jeito como se aproximava.

— Acho que o vinho subiu pra cabeça — disse, quase rindo, sem me encarar.

Assenti com um gesto vago.

Por dentro, alguma coisa se torcia.

Passamos o resto da manhã em gestos pequenos. Guardamos as garrafas vazias da noite anterior. Ela limpou a mesa enquanto eu lavava as taças. A água estava gelada. O tempo parecia mais lento do que o normal, como se o sábado estivesse travado em um modo de espera.

Às onze e pouco, a energia voltou.

A luz da cozinha piscou, os aparelhos começaram a despertar aos poucos. A TV ligou sozinha, ainda sintonizada no canal de notícias. Estávamos os dois na sala quando vimos a manchete:

“Fenômeno Onírico: relatos de troca de sonhos se espalham após apagão causado por tempestade solar.”

Eu congelei.

A apresentadora lia com uma calma artificial:

— Centenas de pessoas relataram ter sonhado com experiências que não reconhecem como próprias. Especialistas sugerem uma possível interferência nos padrões neurais durante a noite passada, causada por uma variação incomum no campo eletromagnético…

As palavras entravam como ruído branco, mas as conexões eram claras.

Ela me olhou com os olhos arregalados. A expressão tinha algo de culpa, mas também de susto — como se tivesse sido pega olhando através de um espelho.

Fiquei parado. Sem conseguir piscar.

A dúvida cresceu dentro de mim como uma coisa viva.

Talvez não fosse meu sonho.

Mas se era dela… então o que, exatamente, eu vi?

Olhei para ela. Ainda imóvel.

A pergunta formou-se na garganta, mas não saiu.

No fundo da xícara, o café já estava frio.

Na janela, a chuva havia voltado a engrossar.

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