Os sonhos que (não) aconteceram

Ela me olhava como se soubesse de algo que eu havia esquecido. Estávamos sentados em lados opostos de uma sala branca, vazia, sem janelas. Ela cruzava as pernas com lentidão, como quem não tem pressa. O cabelo dela estava preso de um jeito que eu nunca tinha visto — torcido no alto da cabeça, com uma mecha solta atrás da orelha. Havia um copo vermelho entre nós, e eu sabia que era dela, embora estivesse mais perto de mim.

Acordei antes que qualquer palavra fosse dita.

No café da manhã, sentei à mesa antes da minha esposa. O barulho da chaleira preenchia a cozinha com uma calma artificial. Ela entrou com o cabelo ainda úmido, prendeu num coque desajeitado e me lançou um bom dia distraído.

— Dormiu bem? — ela perguntou, mexendo o açúcar no café com força demais.

— Sonhei com alguém do trabalho — falei, sem levantar os olhos.

— Quem?

— A Ana. Aquela do financeiro.

Ela parou de mexer a colher. Me olhou com uma sobrancelha arqueada, mas sem expressão definida.

— E o que vocês faziam?

— Nada. Estávamos sentados. Conversando, eu acho.

— Estranho.

— É.

Comemos o resto em silêncio. Na rádio, alguém falava sobre trânsito. O pão tinha um gosto neutro, como se estivesse ali só para ocupar o espaço entre as palavras.

No trabalho, vi Ana chegando pelo corredor. O cabelo estava exatamente como no sonho: preso no alto da cabeça, com uma mecha solta atrás da orelha. Um arrepio curto passou por mim. Nunca tinha visto aquele penteado antes.

Comentei o sonho com ela, quase por impulso.

— Engraçado, sonhei com você ontem.

Ela parou. Os olhos se estreitaram por um segundo, depois se abriram como se nada tivesse acontecido. Riu.

— Que coincidência. Eu também…

A frase veio hesitante. O fim ficou suspenso, como se algo ainda quisesse sair. Mas ela desviou o olhar. Disse qualquer coisa sobre o sistema estar lento. E voltou à mesa.

Sorri como quem não dá importância. Mas alguma coisa no jeito dela parar a frase no meio me acompanhou até o fim do dia.

De relance reconheci o copo vermelho: será que sempre esteve ali?

Na noite seguinte, sonhei de novo. Desta vez, ela estava deitada ao meu lado, de costas. Não nos tocávamos, mas o silêncio era íntimo, tecido por algo antigo. Acordei com a sensação de ter dito algo, mas não lembrava o quê.

Voltei a dormir tentando forçar o sonho a continuar, mas ele não veio.

No café da manhã, minha esposa me observava. Segurava a xícara com as duas mãos, sem beber.

— Você dormiu cedo ontem — disse, com a voz baixa.

— Estava cansado.

— Te ouvi falando alguma coisa à noite. Meio enrolado.

— Deve ter sido sonho.

Ela assentiu, mas não parecia satisfeita com a resposta.

Os sonhos se tornaram frequentes. Nem todas as noites, mas com uma constância suficiente para me fazer esperar por eles. Havia uma leveza estranha naquele lugar compartilhado. Nenhuma consequência. Nenhuma hesitação.

Nos sonhos, ela ria de coisas que eu não dizia. Me olhava com uma ternura que nunca vi acordado. Tocava meu rosto com a ponta dos dedos como se testasse a realidade.

Acordava com o peito leve, mas o corpo pesado. Como se tivesse voltado de muito longe.

A rotina em casa começou a se desalinhar. Pequenos atritos que não existiam antes. A toalha molhada fora do lugar, a demora para responder, a ausência no toque. Eu evitava conversar. Dormia mais cedo. Ela passou a assistir séries sozinha até tarde.

— Você anda distante — disse uma noite, enquanto escovávamos os dentes lado a lado.

— Só cansado.

Ela me olhou pelo espelho. Havia algo nos olhos dela que me doeu mais do que deveria: uma espécie de medo mudo. Como quem percebe que está perdendo alguém, mas não sabe por onde começar a procurar.

No trabalho, Ana e eu evitávamos o contato direto. Não havia necessidade. Já tínhamos outra linguagem. Um olhar que durava um segundo a mais. Um gesto de afastar uma mecha de cabelo. O modo como ela sorria para os outros, mas não para mim.

Nos sonhos, começamos a nos tocar.

Não era erótico, exatamente. Era íntimo. Ela deitava a cabeça no meu colo, eu passava os dedos nos fios do cabelo dela. Ela dizia meu nome e eu sentia algo quebrar dentro do peito.

Comecei a esquecer dos sonhos reais. Das memórias com minha esposa, dos jantares com amigos. Tudo parecia opaco comparado ao que vivíamos dormindo.

Certa noite, o sonho se passou em uma casa de janelas amplas, com uma luz azul filtrando pelas cortinas. Dançávamos lentamente, sem música. A pele dela era morna. O tempo se dilatava. Antes de acordar, ela me olhou como se estivesse se despedindo.

Na manhã seguinte, sentei à mesa e não consegui encarar minha esposa.

— Você está saindo com alguém?

A pergunta veio crua, sem aviso.

— Claro que não! Por que essa pergunta? Mal tenho tempo para dormir!

Ela não respondeu. Apenas empurrou a cadeira para trás e saiu da cozinha.

Na noite seguinte, ela não apareceu.

O sonho era o mesmo — o quarto branco, o copo entre as cadeiras — mas Ana não estava lá. Sentei sozinho, ouvindo o ruído da minha própria respiração. Esperei. Acordei antes que algo acontecesse.

Tentei voltar a dormir. Nada. Virei de lado. Olhei o teto. Senti a ausência dela como um buraco que respirava.

No trabalho, procurei por ela com os olhos. Estava na mesa de sempre, digitando, concentrada. Parecia… bem.

Fui até ela.

Não pensei. Não planejei. Apenas fui.

Ela organizava pastas em uma mesa lateral. Falei algo trivial, um pedido de documento. Não lembro ao certo.

Quando ela me entregou, nossos dedos se tocaram. O tempo pareceu afundar.

— Você… não apareceu ontem.

Ela levantou os olhos com a mesma expressão neutra de sempre, sem hesitação e leve indiferença.

— Desculpa?

A palavra me atingiu com mais força do que deveria.

Fiquei em silêncio por alguns segundos. A cabeça pulsava.

— Nada. Esquece.

Ela voltou aos papéis com naturalidade. Nenhum sinal de que algo fora compartilhado. Nenhuma fissura na superfície.

Enquanto me afastava, a ideia se instalou lentamente:

E se ela nunca tivesse sonhado comigo?

E se aquele primeiro “eu também” tivesse sido só reflexo? Educação nervosa? Brincadeira mal interpretada?

E se tudo — absolutamente tudo — tivesse acontecido só comigo?

No trabalho, evitei cruzar com ela. Não por medo do desejo — mas pelo medo do ridículo. Do delírio.

Até que numa manhã, ao cruzar o saguão com uma pasta em mãos, vi que ela ria com uma amiga, encostada na parede perto do elevador.

O cabelo preso. O sorriso fácil. E um novo anel fino, dourado, recém-lustrado, no dedo da mão esquerda.

Não me viu. Ou fingiu não ver.

Parei por um instante. Olhei o anel. O gesto. A naturalidade. O riso. O modo como ela empurrou a porta com a mão leve.

O sonho acabou, pensei.

Em casa, voltei a dormir tarde. Minha esposa parou de perguntar por quê.

Assisti às séries que ela via antes, tentando entender os episódios sem contexto.

Coloquei o despertador para mais cedo. Passei a tomar café fora.

Nunca mais sonhei com Ana

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